Como se sabe, o tombamento é um processo administrativo por meio do qual o poder público, a fim de proteger bens móveis ou imóveis dotados de valor cultural, reconhece formalmente o especial significado e interesse público do qual se reveste a coisa, que passa a ficar submetida a um especial regime jurídico no que pertine à disponibilidade, à conservação e à fruição, com o escopo de preservar os seus atributos.
O Decreto Lei 25/37, conhecido como Lei do Tombamento, que regulamenta o referido instrumento em âmbito nacional, estabelece em seu Capítulo III os diversos efeitos decorrentes do ato de proteção, sendo inquestionável que a partir da inscrição de determinado bem em um dos livros do tombo ele passa a se submeter a um regime jurídico especial de proteção (que o aproxima muito do regime jurídico público), com o escopo de assegurar proteção efetiva da coisa contra o abandono, a descaracterização, a destruição, a evasão, a alienação e o deslocamento descontrolado.
Em relação ao poder público, decorrem do respectivo ato protetivo, entre outras, as seguintes obrigações:
a) Executar as obras de conservação do bem, quando o proprietário não puder fazê-lo ou providenciar a desapropriação da coisa (artigo 19 da Lei do Tombamento).
b) Exercer permanente vigilância sobre a coisa tombada, inspecionando-as sempre que julgar conveniente (art. 20 da Lei do Tombamento) e impondo penalidades administrativas àqueles que destruírem, inutilizarem, deteriorarem ou alterarem as coisas tombadas
As obrigações legais acima citadas se alinham ao que prescreve a Constituição Federal em seus artigos 216, § 1o e 23, III e IV, impondo a obrigação de tutela dos bens culturais de forma imperativa e cogente, de sorte que a ação protetiva em prol do patrimônio cultural não se trata de mera opção ou de faculdade discricionária do poder público (em todas as suas esferas e dimensões), mas sim de imposição cogente, que obriga juridicamente todos os entes.
Em decorrência, em sede de Direito do Patrimônio Cultural podemos falar na intervenção obrigatória do Poder Público em prol da proteção, preservação e promoção do patrimônio cultural, uma vez que, em havendo necessidade de ação do poder público para assegurar a integridade de bens culturais, esta deve se dar de imediato, sob pena de responsabilização. Não remanesce ao ocupante de cargo público ou administrador margem de discricionariedade em relação a tal tema, por sua relevância, indisponibilidade e essencialidade, afinal de contas a fruição de um patrimônio cultural hígido é direito fundamental e difuso assegurado por nossa Lei Maior.
Em razão disso, quando o poder público se mostrar ineficiente ou omisso no dever de vigilância sobre a coisa tombada, contribuindo para a sua descaracterização, é de se reconhecer a sua responsabilidade solidária e objetiva pela reparação, nos termos do artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81, uma vez que ele ocupa, juridicamente, a posição de garantidor do bem jurídico tutelado.
Assim, no caso de ruína de um casarão colonial tombado, em decorrência do abandono deliberado por parte de seu proprietário e da omissão do poder público no que tange ao exercício do poder de polícia sobre o patrimônio cultural, por exemplo, tanto o proprietário quanto o ente responsável pelo tombamento serão civilmente responsáveis pela restauração do imóvel e reparação por eventuais outros danos, a exemplo do moral coletivo.
Controle judicial
Em casos tais, o Poder Judiciário poderá ser acionado para efetivar a correção da omissão estatal e impor obrigações de fazer ao ente público correspondente, sem que se fale em ingerência indevida, pois o dever de agir a tal respeito toca ao Poder Público de forma indeclinável, como forma de assegurar o direito fundamental à fruição do patrimônio cultural, sendo de se destacar que o Supremo Tribunal Federal já fixou tese, em regime de repercussão geral, no sentido de que:
A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. (STF – Tema 698 – j. 07/08/2023 – Redator do acórdão: ministro Roberto Barroso).
Seguindo a mesma linha de intelecção, os tribunais do país têm, acertadamente, imposto obrigações positivas a entes públicos que se omitem no dever de preservação dos bens integrantes do nosso patrimônio cultural, consoante se extrai das seguintes ementas:
“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MEIO AMBIENTE CULTURAL. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL. IMÓVEL HISTÓRICO EM ESTADO PRECÁRIO DE CONSERVAÇÃO. DEVER DE PRESERVAÇÃO. 1. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação (art. 216, § 1º, CF).2. Na hipótese, restou evidenciada a necessidade de restauração do prédio histórico, em estado precário de conservação. Comprovada desídia no dever de preservação do patrimônio histórico-cultural pela Prefeitura Municipal que havia firmado Termo de Compromisso com o IPHAN. 3. Ingerência na esfera de competência do Poder Executivo não configurada. Precedentes do STF. 4. Apelação Cível e remessa necessária desprovidas.” (TRF 4ª R.; AC 5002382-29.2015.4.04.7008; PR; Décima Segunda Turma; Rel. Des. Fed. João Pedro Gebran Neto; Julg. 03/07/2024; Publ. PJe 03/07/2024).
“APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO EM DESFAVOR DO MUNICÍPIO DE ARAÇATUBA, PARA PROMOÇÃO DE OBRAS DE RESTAURAÇÃO DO GALPÃO DA OFICINA DE LOCOMOTIVAS, PATRIMÔNIO MUNICIPAL TOMBADO PELA LEI Nº. 3.839/92. Procedência decretada em primeiro grau de jurisdição. Insurgência do Município. Não acatamento. Preliminares. Perda superveniente do interesse de agir não caracterizada. A mera adoção de atos visando ao cumprimento da medida jurisdicional (como a abertura de processo licitatório e a contatação da empresa vencedora), por si só, não esvazia a pretensão autoral. Desnecessidade, ademais, de formação de litisconsórcio passivo com o Estado de São Paulo, pois o dever de conservação de patrimônio tombado recai exclusivamente ao proprietário do bem. Precedentes do STJ. Mérito. Matéria devolvida que se limita à alegação de ingerência do Poder Judiciário em determinar que o Município promova a intervenção necessária para restauração do patrimônio histórico-cultural. Preservação que advém de mandamento constitucional e infraconstitucional, de cumprimento vinculado, não havendo margem para discricionariedade do administrador público. Precedentes da Corte Superior e deste Tribunal de Justiça. Violação à separação de poderes de que não se cogita. Sentença mantida. Recurso não provido.” (TJ-SP; AC 1009636-71.2023.8.26.0032; Ac. 17410505; Araçatuba; Décima Câmara de Direito Público; Rel. Des. José Eduardo Marcondes Machado; Julg. 04/12/2023; DJESP 19/12/2023; Pág. 3091).
Enfim, em tema de proteção do patrimônio cultural, especialmente o tombado, o alcance do poder jurisdicional sobre a administração pública não pode ser restringido ao singelo argumento da separação de poderes, uma vez que o sistema de freios e contrapesos presentes em nossa Constituição, não apenas autoriza, mas obriga, todos os Poderes a tutelarem adequadamente os bens culturais existentes em nosso país, sendo absolutamente viável o controle judicial de atos omissivos ou comissivos do poder público que possam colocar em risco a efetividade do direito fundamental à fruição do patrimônio cultural de forma hígida.