É preciso HUMILDADE no trato de fenômenos que não podemos controlar ou evitar e, sim, prever e prevenir
Rompimento de barragem devido às chuvas no RS
Maio 03 2024
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Tragédia no Rio Grande do Sul
A Defesa Civil gaúcha informou que os temporais já causaram 24 mortes, e 21 pessoas estão desaparecidas.
O governador declara tratar-se do “maior desastre da história” do Rio Grande do Sul – com impacto ainda pior do que o registrado no ano de 2023, quando as inundações mataram mais de 50 pessoas.
Até o momento, aproximadamente 68 mil pessoas foram atingidas pela tragédia das inundações e quase 15 mil se encontram desabrigadas. Perto de 5 mil pessoas foram deslocadas para abrigos, enquanto as demais permaneceram desalojadas (na casa de familiares ou amigos).
A Tragédia da Imprevisibilidade
Não se trata a tragédia de um “apocalipse climático”. Pelo contrário – o fenômeno danoso era totalmente previsível.
O Brasil, em especial a Região Sul, está justamente na zona mais sensível de baixa pressão. Regiões de baixa pressão ao sul do equador ocorrem em três centros: na América do Sul, África do Sul e Indonésia. De fato, a atmosfera do globo terrestre é sujeita à variações de pressão sazonais. São fenômenos zonais e celulares, que afetam o comportamento climático, interferem na atuação dos ventos alísios e impedem a entrada ou saída de massas de ar quente ou fria. Isso influi diretamente na ocorrência de chuvas, tempestades ou estiagens. Por óbvio que há também interação com fenômenos ocorrentes na grande massa Oceânica do Pacífico ( El Niño e La Niña).
Assim, no caso da tragédia que hoje vivenciais no Sul do País… como de resto em várias outras, há previsibilidade – permitindo implementação de ações de prevenção, contingência e emergência, para reduzir ocorrências de danos materiais graves ou fatalidades.
Interações Importantes
Mas a interação de fenômenos, no caso brasileiro, envolve a denominada “Anomalia Magnética do Atlântico Sul” – AMAS ou SAA.
A AMAS é uma região onde a parte mais interna do denominado cinturão de Van Allen, tem a máxima aproximação com a superfície da Terra. Nessa região, a intensidade de radiação solar pode afetar e interferir não apenas na engenharia de transmissão e comunicações de forma mais intensa do que em qualquer outra área, como também atrair intensas tempestades e ocorrência de raios.
A AMAS muda lentamente de região no Hemisfério Sul, tanto que levou 300 anos para atravessar o Atlântico e se instalar sobre a região Sudeste do América do Sul, interferindo na região sul e Sudeste do Brasil, com sua borda de transição tocando o litoral do nordeste e equador.
Em toda essa área deve-se esperar, há muito, conforme a interação e proximidade do comportamento solar, raios e tempestades. Nesse caso… falar-se em “imprevisibilidade”… chega a ser ultrajante.
Hoje, há contínuo monitoramento do comportamento solar, e um centro de emergência climática sério deveria saber que alterações em nossa estrela afetam diretamente o planeta nesse campo.
Por aí, vê-se que todo um sistema de monitoramento, previsão, contingência e emergência… há décadas já deveria ter sido montado.
O fator humano
Se a interferência humana na ocorrência desses fenômenos globais leva a debates bizantinos no campo técnico e político, no que tange à governança e controle territorial das áreas afetadas pelos fenômenos… a intervenção humana é determinante para a ocorrência ou não das tragédias – incluso a incrementação dos eventos climáticos por conta dos impactos e da degradação ambiental antrópica.
Não é de hoje – aliás é de décadas, que nós e muitos outros mais gabaritados vêm alertando para a péssima condução política das medidas de adaptação e resiliência climática – hoje substituídas por uma complexa e ideologizada agenda de ações de “mitigação”, “compensação” e “especulação financeira”, geradora de deseconomias, “lacrações” e conflitos.
Não é de hoje que muitos têm alertado para a manipulação ideológica eurocentrista prevalente no painel científico da ONU, bem como na introdução de prioridades identitárias com forte apelo geopolítico sob a bandeira da “sustentabilidade” e do “termostato” conveniado no Acordo de Paris e “aferido” nas COPs posteriores.
O fato é que bilhões de dólares foram e são drenados em “projetos verdes”, programas de “transição” de matrizes energéticas e no próprio mercado de títulos compensatórios, com resultados incipientes – sem priorizar uma política estruturante de segurança alimentar, de controle territorial, o planejamento da resiliência urbana e a defesa civil, face aos eventos do clima – sejam eles quais forem – estejam os dedos de militantes e ativistas apontados para nós – humanos – ou para o céu.
É hora de reconhecer que a Agenda 2030 da ONU promove uma visão de mundo pretensamente justa, porém desalinhada com a realidade econômica ou mesmo ambiental humana.
A retórica do medo até aqui implementada, ao substituir a racionalidade pelo proselitismo consensuado, levou governos a decisões que oscilam entre o anticientificismo e o biocentrismo – ambos desumanos, com resultados ineficazes quando não prejudiciais ao emprego, à renda, à economia e à soberania dos países afetados.
Agora, eventos extremos invadem a terra porta adentro e a vida na tênue superfície do planeta é impactada por grandes eventos que não respeitam nossas pretenciosas agendas políticas.
Descentralizar e integrar
Precisamos mudar com urgência nosso eixo de gestão.
Sermos humildes para assumir nosso desafio de nos salvar e preservar nossa frágil humanidade num planeta de bilhões de anos, que já acomodou em sua superfície vários eventos de extinção de vidas de espécies em massa e inúmeras mudanças de clima…
Reforçar nossa busca por resiliência e adaptação a partir das gestões locais, observando o microclima e a segurança da população, seria o caminho factível.
Devemos priorizar a inovação real da tecnologia para ampliar nossa resiliência e adaptabilidade. Parar de utilizar o discurso climatista como meio de indução do pânico e geração de censuras com viés ideológico.
A governança local é o caminho. Deve se conectar em rede com os atores interessados em escala regional, respeitando as bacias aéreas e correntes atmosféricas que condicionam os regimes de chuva e estiagem, as zonas de pressão afetas às massas de umidade e calor, a geomorfologia do planeta, os biomas e as bacias hidrográficas, zonas costeiras e corredores ecológicos.
Porém, como a própria Convenção Quadro do Clima aponta, toda essa ação deve focar na manutenção da segurança alimentar, na produção agrícola, na adaptação e resiliência urbana e na estrutura logística de segurança de fornecimento de insumos e alimentos para abastecer a população e manter produtiva a economia.
As ações de prevenção, defesa civil, saneamento e controle territorial necessitam de governança integrada, sempre atenta ao vetor climático – algo absolutamente ignorado no Brasil.
A gestão climática não se confunde com o uso ocasional de jaquetinhas da defesa civil em palanques plenos de discursos naturebas. Ela deve ter olhos postos na realidade local e na soberania nacional – razão de ser da governança de Estado.
O que fazer
Devemos montar estruturas articuladas de governança climática em bases locais. Atentar para os regimes fundiários que afetam a população inserida no microclima.
De fato, a regularização fundiária confere cidadania, transforma ocupações assimétricas em bairros – permite a correta urbanização, o saneamento, a introdução de aparelhos do estado e o controle soberano do território. Isso é resiliência e adaptação climática.
Gerar estruturas urbanas resilientes, sistemas de economia local sustentáveis, reconhecer centralidades urbanas que reduzam perda de tempo e energia do cidadão em longos deslocamentos. Fazer uso da engenharia para implantar o saneamento, conferir segurança hídrica. Organizar a economia circular, incentivada e regulada, gerando emprego e renda.
Priorizar a tecnologia implica na organização de governança que privilegie sistemas de planejamento, monitoramento, prevenção, contingência e atendimento à emergências – envolvendo uso de satélites, radares, bóias sinalizadoras, comunicação ágil e mobilização de equipes de meteorologistas, físicos, geólogos e engenheiros integrados à Gestão Pública.
O exemplo de São Paulo sob nossa gestão
Procuramos implantar uma governança nos moldes acima postos, no Município de São Paulo, desde quando instituída a Secretaria Executiva de clima no gabinete do Prefeito, para a qual fomos nomeados para tirá-la do papel, estruturá-la e gerí-la.
Perseguimos, com sucesso, essa meta – em dois anos de gestão.
São Paulo não é uma cidade qualquer. É a quarta população concentrada numa cidade, inserida na quarta região metropolitana no planeta. O que aqui se faz, reverbera para além do continente.
Em dois anos de gestão climática pioneira, integrada no município, organizamos do zero a Secretaria Executiva nos moldes de uma Agência do Clima – enfrentando toda espécie de entraves burocráticos, ciumeira de áulicos e resistências políticas. Implementamos um Plano Climático ambicioso, adotando relatórios e métricas, publicados regularmente.
Atraímos para a governança da SECLIMA os comitês de Mudança Climática e de Acompanhamento da Substituição da Frota Municipal por tecnologias menos poluentes, ambos previstos na Lei de Política Municipal de Mudanças Climáticas e acrescentamos a esse núcleo de colegiados, um Comitê Consultivo de Política e Ações Climáticas, formado por especialistas, gestores e atores engajados – visando aconselhar o secretário e debater soluções.
Instituímos dezenas de Grupos de Trabalho sobre questões setoriais, reunindo stakeholders e gestores – para implementar novas tecnologias na área de transportes, climatização de ambientes, defesa dos recursos hídricos, arborização de vias e desenvolvimento das áreas periféricas do município.
Contribuímos para o esforço de ampliar a cobertura arbórea da cidade em 6%, saindo de 48,2% para 54%. Instituímos bases para atingir a meta de eletrificação de parte da frota de ônibus urbanos, gerando, porém, objetivamente, uma demanda para a indústria nacional, orientando com soberania fossem a ela encomendadas mais de duas mil unidades. Essa foi a mais eficaz, efetiva e numericamente expressiva ação de política industrial climática no ocidente, decidida politicamente em menos de dois anos.
Essa ação estratégica não se deu sem o enfrentamento de interesses econômicos e políticos. Custou desgastes e consumiu crises.
Encetamos, por outro lado, uma vigorosa retomada de controle territorial em defesa dos nossos mananciais e nascentes na coordenação das Operações Integradas em Defesa das Águas. Nossa estratégia evitou – com determinação, o blablablá discursivo e assistencialista para ir direto ao ponto: enfrentar a especulação imobiliária criminosa.
Essa batalha foi desenvolvida em 54 operações conjuntas com Polícia Militar Ambiental, Guarda Civil Metropolitana, fiscalização do estado, do CREA e do Município, Ministério Público, Polícia Civil e Subprefeituras, mobilizados com inteligência concentrada a partir da coordenação, retomando ao crime organizado 260 ha de terreno com ações de embargos e desfazimentos de loteamentos clandestinos, com monitoramento ativo – em proporção inédita na administração municipal e no continente. Outra iniciativa que enfrentou não apenas um fenômeno criminológico desproporcional como, também, contrariou interesses de todo tipo – dentro e fora da Administração Municipal.
Porém, na nossa visão, a governança climática mais eficaz e importante, implantada com resultados concretos imediatos, foi justamente a de prevenção de chuvas.
Enquanto mortos se contaram às dezenas e centenas, em grandes cidades mundo afora, dos EUA à China, com as pesadas chuvas dos anos 2021 e 2022 sobre o planeta, nossa cidade, graças a um Plano Preventivo de Chuvas de Verão, equipado com centros de monitoramento meteorológico, monitoramento do nível dos corpos d’água, reservatórios e piscinões, enfrentou enchentes e inundações com perdas materiais, somando pouquíssimas (embora sempre lamentáveis) perdas humanas, resultando no menor índice de danos em 18 anos, com o maior índice de chuvas dos últimos 5 anos.
A descontinuidade de vários programas e redução do espectro político da secretaria ocorreu após nossa saída do cargo, por mim decidida após sofrer um difamatório, lamentável e leviano episódio de lacração – algo já esperado, face ao somatório de interesses contrariados e incompreensões ideologicamente motivadas.
A sucessão de indefinições e troca de gestores que se seguiu chegou a fazer a cidade, por um momento, mergulhar num desastroso apagão na primeira forte tempestade de final de ano de 2023, salvando-se do pior por ter mantido a estrutura de prevenção com um eficiente Centro de Gerenciamento de Emergências, ter ocorrido a conclusão de um intenso programa de obras de contenção de enchentes, limpeza de piscinões e retificação de córregos, e havido sensível redução nas precipitações na cidade no início de 2024.
Mas a secretaria hoje segue em boas mãos – sob o comando do amigo e magistrado Renato Nalini, mostrando, com esses exemplos, que é possível agir para melhorar a resiliência e promover a adaptação, sem fazer proselitismo.
Talvez assim, pela base, possamos corrigir as distorções que ora nos afetam, instituídas no topo do sistema de enfrentamento global que até agora construído.
Conclusão
Enfim, é possível apresentar resultados, evitando o blablablá, agindo com governança local e deixando de lado a lacração.
Quanto à tragédia vivida agora, no sul do Brasil, que do evento se retire lições para os governos estaduais e, principalmente, o governo federal.
A gestão climática não deve se prestar a servir de palco para proselitismo e discursos fáceis. Deve se envolver efetivamente na gestão territorial estruturante, atraindo para si as medidas de monitoramento, prevenção, contingência e emergência.
Mais ainda, é preciso adquirir HUMILDADE no trato de fenômenos sobre os quais não temos o condão de controlar ou evitar e, sim, prever e prevenir.
Notas:
http://www.theeagleview.com.br/2023/08/apagoes-na-terra-eletromagnetismo-e-o.html
https://www.theeagleview.com.br/2023/03/o-clima-pela-base.html
Antônio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor institucional e ambiental. Sócio fundador do escritório Pinheiro Pedro Advogados, é diretor da AICA – Agência de Inteligência Corporativa e Ambiental. Integrou o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, foi professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, docente do NISAM – Núcleo de Informações e Saúde Ambiental da USP e Consultor do PNUD e do UNICRI – Interregional Crime Research Institute, das Nações Unidas. Possui vários trabalhos e consultorias publicados para o Banco Mundial, IFC e outros organismos multilaterais. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, é Conselheiro no Conselho Superior de Estudos Nacionais e Política da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Iniciativa DEX, preside a tradicional entidade UNIÁGUA – Universidade da Água. Foi Secretário do Verde e Meio Ambiente (Gestão Régis de Oliveira) e primeiro Secretário Executivo de Mudanças Climáticas (Gestão Ricardo Nunes), da Cidade de São Paulo. Fundou e Presidiu a Comissão de Meio Ambiente da OAB SP, sendo declarado membro emérito pelo Conselho Seccional. Coordenou o Grupo Técnico organizado para elaborar o texto substitutivo do PL da Política Nacional de Mudanças Climáticas, na Relatoria do Deputado Federal Mendes Thame – apresentado, aprovado e sancionado em 2009. Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Postado 03 de maio de 2024 por Antonio Fernando Pinheiro Pedro em https://www.theeagleview.com.br/2024/05/o-grande-desastre-climatico-e.html